Dois filmes, uma mensagem.

Ontem tive um daqueles serões, daqueles que me enchem a alma, que me fazem sentir feliz! Senti-me revigorada! O cinema faz-me isso. E que bem me fez!.. Aquele aparelho para ouvir que pouco a pouco se vai baixando até ser o silêncio completo mais não é que o escape de quem foge a uma vida monótona, ao vazio das suas vidas, mais uma maneira de fugir à rotina, da qual também já fugira Howard, ou melhor, da qual fora expulso, pois os que dizem o que sentem são muitas vezes considerados loucos... ("Hopeless emptiness. Now you've said it. Plenty of people are on to the emptiness, but it takes real guts to see the hopelessness"). E essa loucura, a de fazer o que se sente e se quer, é difícil de concretizar, de ser aceite pelos outros, mesmo sendo a mais pura e genuína verdade, mesmo que se arrisque e viver no vazio... E os choques eléctricos serão apenas um eufemismo, hoje teremos outros... April também tentou ir na voragem da liberdade, do sonho, da fuga às convenções, mas foi engolida, perdeu-se. No fundo, é apenas uma aparente realidade a que a maioria das pessoas vive, pois todos vivemos de acordo com o (mais ou menos) socialmente correcto. Mesmo quando se tem um lampejo de vida, se sonha ser diferente, é difícil sê-lo. Seja a sociedade, sejam os choques eléctricos, tudo tende a normativizar-nos, a uniformizar-nos, e não adianta pensar o contrário, pois já ninguém inventa nada, já ninguém consegue ser diferente, tudo é calibrado e/ ou normativizado de acordo com o regulamentado, que é o aceitavelmente correcto... ou então corremos o risco de nos afogarmos. April acaba por deixar-se afogar (?). À sua maneira ainda tenta fugir, mas a morte/ convenção (ela já havia cedido, aquela sala e cozinha impecáveis, com o pormenor do breakfast, parecem anunciar a cedência; no entanto, a subida à casa de banho e a preparação para o aborto parecem antever o contrário, uma esperança de que afinal ela ainda luta...) acaba por engoli-la.
Milk, ao contrário, é a força bruta da verdade, do genuíno, do sentimento, do querer que é poder! No fundo - quanto a mim, claro! -, a luta é a mesma: a da procura da verdade, daquilo que se pensa ser o correcto, verdadeiro.
Adorei a banda sonora do primeiro e se alguém merece um Óscar, desta vez, tenderei para o Sean Penn. Adorei os pormenores da representação, da caracterização, das feições que ele conseguiu, tão bem! aproximar de Harvey Milk. Merece-o.
Em 2000, a propósito de Magnólia, de P.T. Anderson, escrevi: «Não sei se os filmes são demasiado bons ou se sou eu que ando muito susceptível, mas ultimamente dois ou três filmes têm-me tocado sobremaneira. Este é um deles. É forte, quanto a mim devastador, porque analisa com "pinça" a complexidade do ser humano, os seus pequenos e grandes dramas. É psicologicamente intenso porque a teia de sentimentos é vasta, nomeadamente a dos relacionamentos interparentais; filhos que renegam pais porque foram vítimas de abandono ou de exploração. E há também uma busca de amor e de perdão, enfim, um filme soberbo com um fim e uma música excelentes. [...] Os filmes, os bons, ajudam-me a sobreviver porque alguns há que têm o condão de me recordar que não sou, talvez, assim tão diferente dos outros...». Este comentário aplica-se na perfeição a estes dois filmes, pela mensagem que têm implícita, pela sua força, tal como o de um outro que vi à época, do mesmo realizador deste Revolutionary Road ... Já sabem qual, aquele cujo um saco (mero e simples saco de plástico!) me deixou fascinada no seu esvoaçar, tal como ao protagonista.... ("It was one of those days where it's a minute away from snowing and there was this electricity in the air. You can almost hear it. Right? And this bag was just dancing with me, like a little kid begging me to play with it, for 15 minutes. That´s the day i realized that there was this entire life behind things and this incredibly benevolent force that wanted me to know that there was no reason to be afraid... ever. Video's a poor excuse, i know, but it helps me remember, i need to remember, sometimes there's so much... beauty in the world. I feel like i can't take it and my heart is just going to cave in." E o que diria o (espantoso) mestre Caeiro?...

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
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Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
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Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
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O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
--
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
--
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
--
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
---
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
--
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
--
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
--
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
--
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Comentários

pérola disse…
Já tinha saudades dos teus posts, assim como tenho saudades de tantas coisas: de ir ao cinema, da escola, das nossas conversas...
O poema é lindo e deixou-me sem palavras...
Beijinhos grandes

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